quinta-feira, 7 de junho de 2012

"Pateta"

Pateta - Quinta-feira, 7 de Junho de 2012 

Por:  PERCE POLEGATTO


Aconteceu-me encontrá-lo junto ao rio. Três garotos carregavam um saco que se mexia. Perguntei, e um deles afrouxou a abertura para que eu visse parte do dorso de um animal imundo e quase sem pelos. Iam jogá-lo no rio. Segurei o maior deles pelo braço: eu ficaria com o bicho. Estranharam-me, e outro explicou que era apenas um cachorro velho e sarnento. Insisti, não tinha importância. Mas eles vinham preparados para a execução, o saco vivo despencando da ponte, o maior deles contrariando-me categoricamente até que eu também resistisse e fosse derrubado ao chão para que saísse de seu caminho e deixasse de importuná-los. Atraquei-me com todos, um deles prendeu-me com força, dobrando meus braços para trás. Então vimos que surgia, pela trilha da margem, um homem empoeirado e ruinoso, com um galho seco à mão, que era seu simulacro de arma ou cetro.

“Moleques!”, bradava. “Vou acabar com vocês!”

Cesão Louco perambulava pela cidade, dormia à porta dos botecos e das igrejas, não mais que um inofensivo vagabundo, mas que aterrorizava as crianças com seu aspecto repugnante. Os meninos dispersaram:

“O Cesão Louco! Vambora, gente!”

“Moleques!”, ele ameaçava, avançando com o galho em riste.

Na confusão, apossei-me do saco, corri em outra direção. Contente, mais do que assustado, tive vontade de agradecer ao louco, mas ele já se voltava contra mim:

“Moleque! Vou acabar com você!”

Tive de fugir também.

Meu avô trouxera um remédio para a sarna. Ajudava-me a dar banhos em Pateta e a fazê-lo comer, além de haver sugerido seu nome. Pateta era magricela e passivo, incapaz de morder alguém, mesmo se provocado. Meninos da vizinhança queriam saber a raça da malograda mascote: eu inventara uma palavra que pronunciava com orgulho.

“Você é um mentiroso! Esse cachorro não tem raça nenhuma!”, o mesmo que puxou o rabicho meio pelado do Pateta antes de sair correndo.

Gritei-lhe palavrões, tomado de ódio. Pateta guinchava de dor, mas não dava mostras de agredir, sequer defender-se do que o agredia. Eu o tomava ao colo e o levava para casa, fora do alcance dos perigos do mundo e das outras crianças.

Pateta lambia-me o rosto, mas nunca brincava ou corria. Parecia sempre triste e doente. Quando eu saía, tinha de prendê-lo para que não vadiasse pelas redondezas, para que não o encontrassem e, outra vez, não tentassem atirá-lo ao rio.

Mas não só as crianças poderiam machucá-lo. Pateta em frente de casa, dois rapazes passavam, um deles acertou-lhe um pontapé nas costelas.

“Olha só, que traste!”, riu esse que eu surpreendi em flagrante, gritando-lhe que fosse chutar a mãe.

“Ih, é o dono dele, que azar…”, disse o outro com um cínico aceno de cabeça, brincando com sua própria superioridade – eles pareciam enormes para mim, naquela idade.

Pateta deitou-se ao pé do muro, gemendo com fraqueza.

“Vai, vai com esse cachorro, moleque”, disse ainda o agressor com um gesto de desdém.

Abracei-me ao Pateta. Chorei por ele pela primeira vez. Compreendi que não havia chances para uma criatura tão inofensiva e sem forças. Se ao menos soubesse revidar, se não fosse tão passivo…

Na saída da escola, entre a correria das crianças, fiquei contente em saber que era esperado por meu avô junto ao portão principal:

“Vô, o senhor veio me buscar?”

Meu avô curvou-se com um sorriso cansado, passando-me às mãos um doce com o papel da confeitaria.

“Júlio”, disse ele pausadamente. “O Pateta morreu.”

Meus colegas também pareciam tristes. Queriam saber o que seria feito dele.

“Vamos jogar no rio, Júlio.”

”Não, o rio não”, disse eu enxugando os olhos com as mangas.

Pateta ganhou assim seu lugar no mundo: uma cova rasa, aberta com uma colher enferrujada, à sombra de uma árvore sem nome. A relva cresceu com a chuva, por pouco não encobrindo por completo a ripa que eu fincara na terra e na qual havia inscrito, com a caneta porosa que usava para desenhar: PATETA. DESCANSE EM PAZ. Pensava, ao rever a lápide improvisada, como se lhe dissesse com carinho: “Acabou, Pateta. Acabou.” A palavra paztinha a letra tremida e a inicial desproporcionalmente grande. Pateta descansava enfim, longe de tudo o que podia lhe fazer mal, longe das crianças e dos adultos. Eu visitava a sepultura de relva, por vezes debruçava-me ali contra o dia claro, de nuvens travessas e dispersas. Por vezes soluçava. “Acabou, Pateta. Acabou.” E nunca nada eu compreendia.

.

Bruno percebeu que ele se detinha ali há algum tempo.

“O que tem lá embaixo?”

“Nada.”

Júlio virou-se em busca de uma camisa. Ninguém nunca nada compreendia. Bruno se movia entre o quarto e o banheiro sem saber dos séculos. Sem as catedrais, os círculos de pombos, as inscrições nas sepulturas. Perguntou-lhe as horas. Lá fora, começava a chover.


Os últimos dias de agosto

Imagem: Vincent van Gogh. Pomar com abricoteiros em flor. 1888

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